Adaptação (Adaptation.)

Charlie Kaufman já provou ser uma das mentes mais criativas de Hollywood. Se como diretor seu “Synecdoche New York” não chamou muita atenção, como roteirista ele simplesmente arrebatou fãs eternos, que todos os dias esperam por mais obras como “Natureza Quase Humana”, “Quero Ser John Malkovich”, “Confissões de uma Mente Perigosa” e “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças”.

Mas o filme que vamos falar agora é sem dúvida sua obra prima. Em “Adaptação”, Kaufman explora a dificuldade enfrentada por roteiristas na hora de adaptar o trabalho de terceiros. Sem muitos caminhos a seguir, o cara acaba se inserindo no filme como personagem principal - um feito extremamente incomum e, ouso dizer, nunca visto antes na história do cinema. 

Na trama, ele, Charlie Kaufman, precisa adaptar o livro “O Ladrão de Orquídeas”, da escritora Susan Orlean (interpretada de forma grandiosa por Merryl Streep). O problema é que o roteirista passa por uma severa (eu digo severa mesmo!) crise de personalidade, em que se encontra careca, gordo, paranoico e sem inspiração para viver. É a mais pura depressão em forma humana.

Conforme o filme se desenrola, Kaufman não vê outra saída a não ser  envolver-se de corpo e alma na história, e assim, como já foi dito, ele acaba se inserindo no roteiro. Mas, além disso, seria importante para ele descobrir um pouco mais sobre a autora Susan Orlean, e também sobre o homem que inspirou o livro, John Laroche - personagem emblemático que rendeu o Oscar a Chris Cooper em 2003. Neste ponto, a trama sofre uma reviravolta inesperada... e Kaufman inicia um jogo que pode custar sua vida... Fictícia, claro. 


Fica realmente complicado transcrever toda a genialidade deste roteiro em palavras. Podemos pensar nele como um verdadeiro exercício metalinguístico de cinema, em que existem dois filmes dentro de “Adaptação”. No primeiro deles, o andamento é lento e subjetivo, com enfoque total na hilária, deprimente e angustiante depressão corrosiva de Charlie. Sua falta de confiança, seu ódio pelo irmão gêmeo Donald, sua ausência de tato com a mulher que corteja... Enfim, um personagem que luta para ser normal, mas falha miseravelmente. Diante de tantos problemas, claramente sua criatividade seria afetada. É aí que ele participa de uma palestra do mestre roteirista Robert McKeeque, e esse encontro marca o início do outro filme dentro do filme. Confuso? É Kaufman! 

Enquanto o roteirista, íntegro e deprimido, se condenava por ter ido aquela patética palestra, McKeeque discursava de forma poética no palco, conseguindo chamar atenção ao afirmar que o uso do voice over é um clichê a ser repudiado (o mais engraçado é que “Adaptação” é fortemente alicerçado pelo voice over). 


Kaufman pede então a ajuda de McKeeque, e o mesmo lhe diz para colocar mais emoção no roteiro, que até então falava de flores e de como a vida poderia ser comum. E para ter mais emoção ficava implícito que amizades deveriam se tornar romances, flores virariam drogas e por aí vai. É então que tudo isso começa acontecer no filme. Uma mistura de realidades praticamente única no cinema. Da primeira vez que você assiste, o fato pode passar despercebido, mas Kaufman, até a metade do longa, avisa subliminarmente tudo que vai rolar no final. Sensacional. 

O peso do drama e humor no filme é incrível. Temos diálogos e pensamentos primorosos, extremamente engraçados e que servem de base para o texto impecável. A montagem da personalidade e passado dos personagens Susan e Laroche é uma aula de criatividade e sensibilidade.


Kaufman realmente quis confundir a todos ao pintar-se de maneira tão distorcida, se masturbando na cama de forma deprimente, se achando horrível e sem talento. O interessante é que, ao mesmo tempo, o roteirista insere Donald, um irmão gêmeo fictício que é basicamente mais um peso na balança da construção de seu alter ego. Donald é um idiota, mas apesar de tudo ele se ama, sua auto estima é simplesmente invejável, e assim, tudo dá certo para ele. No final, a personalidade de Kaufman se posiciona em algum lugar entre o depressivo Kaufman e o extremamente confiante Donald. Um meio termo de tudo isso. 

A direção do filme, realizada por Spike Jonze, é auspiciosa. Ele capta perfeitamente a linguagem de Kaufman e a traduz inserindo indiscriminadamente sua personalidade. Momentos como os bastidores das filmagens de “Quero Ser John Malkovich” (projeto de Kaufman, também dirigido por Jonze) são simplesmente fantásticos. Todo trabalho da edição e da trilha sonora (inesquecível) quase roubam a cena, mas é o roteiro maluco de Kaufman o coração pulsante da obra, e Jonze faz questão de enfatizar isso assumindo humildemente o papel de mero coadjuvante no resultado final. Este talvez seja o seu maior mérito. 

Falar de “Adaptação” é falar de cinema em sua mais pura essência. Existem frases neste filme que (correndo o risco de parecer piegas, digo) podem mudar vidas. Além de ser uma prova cabal de que Nicolas Cage já foi um bom ator, o filme traz ainda Maryl Streep no seu ápice, sem falar nos coadjuvantes (Tilda Swinton, Chris Cooper, Maggie Gyllenhaal, John Malkovich, entre outros). O livro “O Ladrão de Orquídeas” realmente existe, assim como Laroche e Susan Orlean. A liberdade criativa que Kaufman ofertou em “Adaptação” é algo único, que pode nunca se repetir. Se você ainda não assistiu, está perdendo tempo.



"O Ladrão de Orquídeas"


John Laroche


Susan Orlean


Adaptação/ Adaptation.: Estados Unidos/ 2002/ 114 min/ Direção: Spike Jonze/ Elenco: Nicolas Cage, Tilda Swinton, Meryl Streep, Chris Cooper, Maggie Gyllenhaal, Brian Cox

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