Um Pombo Pousou num Galho Refletindo sobre a Existência


"Fico feliz de saber que está bem"

(Antes de tudo, este é talvez o melhor título de todos os tempos, não acha?) Um Pombo Pousou num Galho Refletindo sobre a Existência é a terceira parte da trilogia existencial do diretor sueco Roy Anderson. O filme segue um ritmo semelhante de seus antecessores (Canções do Segundo Andar e Vocês, os Vivos), e com uma incomparável narrativa, consegue explorar toda a complexidade da vida, suas tristezas e alegrias, medos e dependências.

O roteiro é dividido em diversos episódios erráticos, que em alguns casos são interligados, em outros apenas ocasionalmente se cruzam. Dois parceiros vendedores de artigos humorísticos (como máscaras e dentaduras de vampiros), rotineiramente tem sua relação explorada dentro destes episódios, mas não existem protagonistas na obra de Anderson, as coisas não funcionam dessa maneira.




Capturadas quase sempre sem cortes, as pequenas estórias são basicamente cenas teatrais, coreografadas e encenadas como numa peça. Atores carregam seus rostos e mãos com uma pesada maquiagem branca, o que lhes dá um aspecto cadavérico. É um expressionismo moderno que, de maneira completamente peculiar, navega por humores lúdicos e dramas existenciais profundos, muitas vezes depressivos e sem esperança.

Esta transição de humor e drama acontece drasticamente, e da estranheza nasce a genialidade autoral e técnica do trabalho. Um Pombo Pousou... oferece principalmente liberdade para audiência, por ser completamente subjetivo. A fotografia fria, de enquadramento sempre centralizado, juntamente com uma cenografia detalhista, faz com que visualmente o trabalho agrade aos olhos, por mais estéreis que as locações pareçam. 



Em determinada cena, logo no início, um velho gordo abre uma garrafa de vinho, enche um copo... e bebe lentamente. Sua expressão corporal exagerada, estranhamente mórbida, gera desconforto, e isso é, de alguma forma descalibrada, uma situação bem engraçada. Logo em seguida ele leva a mão ao peito, se joga contra a parede e cai no chão desfalecido, vítima de um provável infarto. O realismo da morte é perturbador, deprimente, e segundos antes você estava rindo da mera existência do personagem.

Enfim, é impossível descrever com fidelidade a real sensação de assistir Um Pombo Pousou num Galho Refletindo sobre a Existência. É preciso ver para crer.
 Como o próprio diretor divagou, do alto do galho, o pombo reflete sobre nossa existência, imaginando o que diabos estamos fazendo aqui embaixo, na terra dos homens. Basicamente, a ideia (e questão) principal do filme é essa. Recomendado.






Um Pombo Pousou num Galho Refletindo sobre a Existência/ A Pigeon Sat on a Branch Reflecting on Existence/ En duva satt på en gren och funderade på tillvaron: Suécia, Alemanha, Noruega, França/ 2014 / 101 min/ Direção: Roy Anderson/ Elenco: Holgar Andersson, Nils Westblom, Charlotta Larsson, Viktor Gyllenberg

Citizenfour - Crítica


Visão Além do Alcance

Em 2014, o administrador de sistemas Edward Snowden revelou ao mundo que seu empregador – os Estados Unidos da América, via Agência de Segurança Nacional (NSA) – estava roubando informações privadas de cidadãos comuns. Basicamente, se você tem um Gmail, e enviou uma foto para alguém por esta conta, a NSA tem uma cópia da foto. Isso é fato. A invasão do massivo banco de dados da Google é apenas um pequeno exemplo do escopo da operação, pois o grosso das informações adquiridas vem de empresas gigantes de telecomunicação, como a Verizon.

Para provar a veracidade do que alegava, Snowden vazou documentos confidenciais da inteligência americana para veículos de comunicação supostamente responsáveis, e assim lavou suas mãos. Ele queria chamar a atenção e conseguiu. Posteriormente, foi acusado de traição contra sua pátria, e desde então encontra-se exilado na Rússia, único país que teve coragem de o acolher.


A produção do filme simbolicamente começou em 2013, quando Snowden contactou a documentarista Laura Poitras por meio de uma rede segura. Seu pseudônimo era Citizen Four. Ele afirmou ter provas irrefutáveis sobre um roubo de informações privadas sem precedentes, orquestrado pela NSA. Poitras, em parceria do repórter investigativo Glenn Greenwald, decide então se encontrar com o correspondente anônimo em Hong Kong. A partir dali tudo é registrado: Snowden explica as incongruências que se tornam brechas nas leis que "regulam" este tipo de invasão, dá detalhes técnicos de como funciona o imenso processo de captura dessas informações, exemplifica o perfil das pessoas que lidam diretamente com essas operações (outros como Snowden), e decide, em parceria com Poitras e Greenwald, liberar os documentos sigilosos para a mídia internacional.




Definitivamente é a importância da mensagem que faz de Citizenfour uma obra excepcional, e nem tanto sua desenvoltura como produto da sétima arte. O filme nos faz perceber que o poder de alcance da NSA vai além dos limites da imaginação de qualquer um. Chega a ser incompreensível a insaciável gana americana de vasculhar a vida alheia. São terabytes de informações captados por minuto. Uma senha complexa pode ser quebrada em segundos. Constantes investimentos erguem instalações monstruosas, que servem para armazenar esta demanda insana de dados. Existe um número assustador de drones espionando pessoas específicas por tempo indeterminado. São absurdos pisando na cabeça de absurdos. E ainda sim, tudo nos parece distante.


Percebemos no entanto que Citizenfour não tem como objetivo principal esmiuçar esses detalhes técnicos do escândalo, mas sim evidenciar o lado humano por trás deles. Como foi dito, a abordagem dos procedimentos que possibilitam a invasão da NSA existe enfaticamente, mas em sua essência, a fita principalmente nos oferece a oportunidade de entendermos como foi esse meticuloso e extenuante processo de se dizer a verdade, e nada mais que isso. É a questão moral e os sacrifícios pessoais de Edward Snowden que estão verdadeiramente em destaque. O roubo das informações já foi divulgado há tempos, mas até agora tudo continua invisível. Recomendado.



Citizenfour: EUA/ 2014 / 114 min/ Direção: Laura Poitras/ Elenco: Edward Snowden, Glenn Greenwald, William Binney, Julian Assange, Laura Poitras, Barack Obama

Love & Mercy


Não seria bom vivermos juntos, num tipo de mundo onde nós pertencemos?

Quem conhece um pouco da história da banda californiana The Beach Boys, sabe que o compositor Brian Wilson é um dos maiores gênios de nossa história recente. Citando o mais conhecido de seus feitos, temos por exemplo o lendário Pet Sounds, disco que revolucionou a forma de se produzir música e que é considerado por muitos o melhor álbum de rock já feito.

Pois bem, a genialidade de Brian definitivamente transcendia sua arte. O cara não era simplesmente um dos integrantes deste grupo de rapazes joviais, que falavam de tardes ensolaradas e garotas bonitas. Ele era o maestro de uma sinfonia que acontecia por completo em sua cabeça.


Seus delírios que viravam canções eram provavelmente compostos por dezenas, talvez centenas de camadas sobrepostas, ornamentadas por múltiplos instrumentos, efeitos sonoros, coros de vozes, que se entrelaçavam milimetricamente. Melodias talhadas por uma perfeição que, na repetição da prática, se tornava uma experiência exaustiva para outros, e solitária para Brian.



Essa visão além do alcance foi demais para ele. Os abusos de drogas e álcool ajudaram, mas desde cedo o jovem já demonstrava tendências preocupantes relacionadas a sua saúde mental. Durante um longo período ele se perdeu por completo. Se tornou um recluso, um prisioneiro dentro de sua própria casa, dentro de sua mente. Nos melhores dias ele tentava jogar seu carro de precipícios. 


O grande problema no entanto foi que, durante seu período de reabilitação, o salafrário Eugene Landy se tornou seu "terapeuta de tempo integral", tomando assim as rédeas de tutor legal. Na verdade, o que ele fez foi super dosar Brian, o mantendo numa coleira existencial, psicológica e química, por anos. Algo tão absurdo que parece impossível, mas que acontece aos montes (vide a recente triste história do mestre B.B. King).




Pois bem, foi mais ou menos neste período que Brian conheceu Melinda Ledbetter. Ele queria comprar um Cadillac na loja em que ela trabalhava, acabou conhecendo uma nova canção. Foi Melinda que lutou praticamente sozinha para afastar o músico das garras de Landy e trazê-lo de volta à vida. Em 1995 eles se casaram e estão juntos até hoje.


Love & Mercy conta esta história, e faz isso de maneira belíssima. O excelente roteiro de Oren Moverman e Michael A. Lerner, navega com perfeição por entre passado e futuro do cantor, explorando especificamente estes momentos paralelos de transição, em que o maestro perde o controle de seus atos, e posteriormente quando ele se reencontra, tudo graças ao descobrimento de um novo amor.




A direção de Bill Pohlad consegue resumir com perfeição esta complexa história sem deixar nada para trás. Ele se foca principalmente em fundamentar uma narrativa que ofereça toneladas de informações nas entre linhas. Tudo precisa necessariamente ser rápido, mas nem por isso acaba soando como uma falsa construção. É algo complicado, mas o roteiro e direção acabam se superando. 


O universo da beach music, por exemplo, apesar de reproduzido de maneira fugaz e bastante simbólica, é verdadeiramente honesto. Pohlad tem tempo ainda para presentear os fãs com momentos preciosos, como a inspiradora abordagem do nascimento e gravação de famosas canções do compositor, como Wouldn't It Be Nice, Good Vibrations e até mesmo a mítica Fire.




Este é o passado de Brian, psicodélico, desbravador, assustador. O futuro funciona de maneira diferente, o que acaba sendo ainda melhor. Nele, Brian caminha de forma tranquila, sempre dizendo a verdade, sem nem mesmo pensar no peso de sua palavras. 


A liberdade que o roteiro adota para esta versão do personagem possibilita uma profunda e dramática exploração dos traumas de Brian, como o fato do mesmo ter sido espancado constantemente pelo pai. Ele até perdeu 96% de sua audição do ouvido direito, por causa dos tapas que tomava. Tristezas sinceras de um homem anestesiado.

No entanto, o que faz deste filme um sucesso é seu elenco, escalado auspiciosamente. Paul Dano usa toda sua intensidade característica para viver o jovem Brian do passado, e o resultado é assombroso. A seriedade do ator é visceral. Não existem resquícios dele dentro do papel. Paul simplesmente desaparece. Sua dedicação a Brian Wilson é humilde e brutal.




Do outro lado, temos o improvável John Cusak vivendo o já não tão jovem Brian, do futuro. O que mais chama atenção na atuação de Cusak é sua preocupação metódica com o trabalho corporal do personagem. Toda a mistura de confusão e clarividência de Brian Wilson exigiam, necessariamente, que fossem reconhecidas apenas com um olhar, era importante certa pureza, e Cusak acerta nesta questão, acerta como nunca acertou em sua vida. Sua desenvoltura acima da média é uma grata surpresa.

Paul Giamatti surge inescrupuloso e asqueroso (sem exageros) como o super cretino Eugene Landy. E por último, mas não menos importante, temos a excepcional Elizabeth Banks, deixando as comédias um pouco de lado para realizar um sólido trabalho como a deslumbrante vendedora de Cadillacs, Melinda Ledbetter.




Em resumo, Love & Mercy é uma pequena obra prima, umas das melhores adaptações para o cinema de uma história do mundo da música, mais especificamente do Rock 'N' Roll. A direção de Pohlad emana respeito, e as interpretações são inspiradas pela força maior do trabalho lendário de Brian. No final, esta é uma história inacreditável, bela e melancólica. 

É muito triste saber que uma das mentes mais brilhantes de nosso tempo simplesmente não conseguiu encontrar espaço em meio a mediocridade e ganância que dominam tudo e todos. Brian guardou por muito tempo seus demônios, e eles o devoraram por dentro. Filme obrigatório.
















































Love & Mercy: EUA/ 2014/ 121 min/ Direção: Bill Pohlad/ Elenco: Elizabeth Banks, John Cusack, Paul Giamatti, Paul Dano, Joanna Going, Jake Abel, Kenny Wormald, Graham Rogers, Brett Davern, Bill Camp


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